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Herbert Viana

Doutor em Engenharia (UFRGS), Mestre em Engenharia (UFPB), graduado em Engenharia (UFCG) e Direito (UEPB), com especializações em Tecnologia Mineral (UFPA) e Gestão Empresarial (PUC-Campinas). Professor na UFRN desde 2016, com atuação em ensino, pesquisa e extensão universitária. Atualmente cursa Filosofia e Mestrado em Direito.

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Herbert Viana

Doutor em Engenharia (UFRGS), Mestre em Engenharia (UFPB), graduado em Engenharia (UFCG) e Direito (UEPB), com especializações em Tecnologia Mineral (UFPA) e Gestão Empresarial (PUC-Campinas). Professor na UFRN desde 2016, com atuação em ensino, pesquisa e extensão universitária. Atualmente cursa Filosofia e Mestrado em Direito.

A soberania sobre as riquezas minerais: Parte 2 – Regime de Acessão

No dia 15 de novembro de 1889 o Brasil passa da monarquia para república, um ano e três meses depois, em 24 de fevereiro de 1891 é promulgada a primeira Constituição republicana do país, como esperado, diversas mudanças ocorrem com o novo texto na regulação da vida nacional, a exemplo da mudança do regime de propriedade sobre os recursos minerais, onde o art. 72 no seu parágrafo 17[1], estabelece que o proprietário do solo também o era dos recursos minerais nele contido, “[…] salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria.” (Constituição de 1891, atr. 72, § 17).

    Estabelece-se no Brasil a partir do art. 72, § 17 da Constituição de 1891, o Regime de Acessão, que pressupõe a junção da propriedade do solo e do seu subsolo, “pertencendo as riquezas minerais nele existentes como de propriedade do superficiário[2]” (Scaff, 2021, p. 122)[3].

            Para um melhor entendimento do estabelecimento do Regime de Acessão na regulação de tão importantes bens, visto seu peso estratégico para as nações em todos os períodos históricos da humanidade, faz-se necessário um exame hermenêutico dos artigos da Constituição de 1891 que abordaram a propriedade sobre os recursos minerais.

            A hermenêutica jurídica se dedica ao estudo da interpretação das normas jurídicas estabelecendo métodos para a sua compreensão e repercussão legal. França (1997)[4], indica que o caminho hermenêutico segue processos classificados em: gramatical, histórico e lógico-sistemático[5]. O processo histórico de interpretação parte da investigação da época da construção da norma jurídica, de maneira a entender as influências e aspirações daqueles que elaboraram a norma, uma vez que a Constituição reflete os fatores reais políticos, econômicos e sociais que imperam na sociedade (Bonavides, 2004)[6].

             Para entender a nova regulação sobre os recursos minerais instituída pela Constituição de 1891 é preciso reconhecer dois contextos: a influência do liberalismo econômico, sobretudo de inspiração estadunidense, e as disputas entre os estados brasileiros por protagonismo e certo grau de autonomia. Para Bitar (1978, p. 55)[7], “toda a gênese da República é dominada pelo ideal federalista”. Nota-se no art. 64 da Constituição de 1891[8] o protagonismo dos Estados federados, quando se prever a propriedade destes sobre as minas e terras devolutas situadas em seus territórios, ressalvando a defesa das fronteiras, os interesses militares e a construção de ferrovias federais.

            De um regime onde os bens minerais pertenciam a Coroa Portuguesa (Período Colonial), passando para o domínio do Imperador do Brasil (Período Imperial), tem-se a partir de 1891 um novo modelo, não mais com apenas um proprietário do subsolo e seus recursos minerais, mas agora três: a União, os superficiários privados e os Estados.

            Para as Assembleias Legislativas Provinciais, por conseguinte, os Estados, tratou-se de mais um avanço na descentralização de poder, reforçando o federalismo que já se encontrava presente no 1º e 2º impérios, no texto da constituição de 1891 prevaleceu os “[…] interesses ligados aos proprietários de terras sobre outros setores de atividades econômicas, os quais haviam se organizado na Constituinte de 1890-1891 nas bancadas estaduais, por meio da defesa do federalismo” (Corrêa, 2018, p. 203)[9].

            No contexto da primeira constituinte republicana, reforçando as aspirações e interesses das elites estaduais sobre os bens minerais, havia a forte influência do liberalismo econômico, sobretudo o proveniente dos Estados Unidos da América, onde vigorava o Regime de Acessão, aliás, vigora “[…] até os dias atuais, sendo um dos poucos países onde ainda remanesce” (Scaff, 2021, p. 123)[10].

            O liberalismo econômico proporcionou um ambiente propício para o crescimento do capitalismo estadunidense, com empresários investindo em indústrias como a ferrovia, o petróleo, o aço e a produção têxtil. Estes investimentos se tornavam ágeis e rentáveis, quando os recursos minerais de base, encontravam-se com mínima regulação e, com a sua propriedade garantida sem contestações ao proprietário do solo, era a aplicação da política de laissez-faire, que significa “deixar fazer” em francês, implicando uma abordagem de não interferência do governo nos assuntos econômicos.

Os defensores dessa política acreditavam que os mercados deveriam se autorregular, sem a necessidade de intervenção governamental direta. Isso permitiu que os negócios operassem com relativa liberdade, sem regulamentações significativas.

            No Brasil, apesar da consagração do Regime de Acessão conferindo pela Constituição de 1891, algumas inciativas de regulação estatal objetivando um maior controle governamental sobre os recursos minerais ocorreram na Primeira República (1889 – 1930).

            Pode-se destacar a atuação de dois parlamentares neste intento, o paraense Serzedelo Corrêa, e o mineiro João Pandiá Calógeras, talvez por coincidência, representantes na época dos dois estados que concentram as maiores províncias minerais do país na atualidade: Pará e Minas Gerais.

            Serzedelo questionava já na Constituinte o Regime de Acessão sobre os recursos minerais, argumentando que não se aplicava as minas o mesmo direito sobre o solo, “não se pretendera, na intepretação do político paraense, que a mina fosse considerada nas mesmas condições da propriedade superficial” (Corrêa, 2018, p. 209).

            Era latente a preocupação com o enorme poder sobre os recursos minerais que a Constituição de 1891 havia conferido aos proprietários do solo (os superficiários), que nas palavras de Serzedelo poderiam “[…] vendê-la, doá-la, inutilizá-la, explorá-la ou não, sujeito apenas à legislação comum” (Corrêa, 2018, p. 209).

            Tal inquietação gerou iniciativas de controle estatal sobre os recursos minerais, destaca-se a criação em 1903 de uma comissão especial da Câmara de Deputados, por proposição do deputado João Pandiá Calógeras. Doze anos depois entra em vigor o Decreto 2.933 de 6 de janeiro de 1915, que em detrimento ao art. 72 da Constituição de 1891, estabeleceu em seu art. 2º que a “mina constitue propriedade immovel, distincta do sólo, sendo alienavel isoladamente[11].

            Importante para o estudo hermenêutico do Decreto 2.933 de 1915, recorrer ao processo histórico de interpretação, destacando fatos que possivelmente influenciaram o legislador na época.

            Em 10 de janeiro de 1907 o Decreto 6.323 cria o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, no ano seguinte (1908), o recém criado órgão apresenta um estudo sobre as reservas em Minas Gerais de minério de ferro e manganês, atestando segundo Figueirôa (1997)[12], reservas na ordem de 4 milhões de toneladas de minério de ferro com um teor de 65% de Fe e, 1,7 milhão de tonelada de manganês a 50% de teor, descoberta para época de relevante impacto, pois representava 25% das reservas mundiais até então conhecidas.

            Segundo Machado & Figueroa (2020, p. 149)[13], em 1909 “vários grupos estrangeiros passaram a adquirir terras em Minas Gerais, as quais continham no subsolo jazidas de minério de ferro”. A combinação do estudo sobre reservas de minério do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil de 1908, com o art. 72 da Constituição de 1891 que dava ao superficiário pleno direito de usufruo sobre os recursos minerais do subsolo, atraiu o interesse estrangeiro no início do século XX sobre as jazidas do país.

            Um fato relevante ocorreu em 1911 na cidade de Itabira – município pólo para exploração do minério de ferro no estado de Minas Gerais – foi criada por capital inglês a Itabira Iron Ore Co., o que levou a inquietação para diversos grupos brasileiros, da academia ao empresariado, reverberado nas representações políticas, segundo Machado & Figueroa (2020), o principal opositor ao fato foi Artur Bernardes, que viria a ser o 12º presidente da República ente 1922 e 1926. O projeto também reuniu apoiadores entre o empresariado brasileiro, como por exemplo, João Teixeira Soares, na época presidente da Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM) e os industriais Álvaro Mendes de Oliveira Castro e Pedro Nolasco da Cunha (Machado & Figueroa, 2020, p. 150).

            A necessidade por aço no mundo ganha novo incentivo em 1914 com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, tornando as reservas brasileiras de manganês e minério de ferro mais ainda estratégicas. Nota-se que o Decreto 2.933 de 1915, representava uma reação de grupos nacionais ao caráter liberal em que o art. 72 da Constituição de 1891 regulava a propriedade do subsolo e dos recursos minerais brasileiros e, os eventos de 1908 (comprovação de grandes jazidas de minério de ferro e manganês em Minas Gerais), de 1909 (compra de terras em grande número por grupos estrangeiros na região das recém-descobertas jazidas), de 1911 (organização com capital inglês da Itabira Iron Ore Co.) e, de 1914 (início da Primeira Guerra Mundial), reforçavam a disputa entre o pensamento liberal e aquele que via como ameaça aos interesses nacionais a aplicação da política de laissez-faire (“deixar fazer”), por parte de grupos estrangeiros sobre as riquezas minerais do país.

            O Brasil nasce para o mundo ocidental como uma colônia a ser explorada por sua metrópole, diferentemente da experiencia nos EUA, onde houve a imigração de famílias com o ânimo de fixar residência nas novas terras, no Brasil, nas palavras de Darcy Ribeiro (2008, p. 73)[14], “os povoadores europeus que aqui vieram ter eram uns poucos náufragos e degredados, deixados pelas naus da descoberta, ou marinheiros fugidos para aventurar vida nova entre os índios”.

            O primeiro governador colonial em terras brasileiras desembarcou em 1549, e com ele não venho famílias, segundo Ribeiro (2008), a maioria dos recém-chegados eram degredados, para se ter uma ideia, mulheres portuguesas quase não tocaram o solo brasileiro no primeiro século da colonização, Ribeiro (2008), aponta que foram apenas três irmãs em 1551, mais nove mulheres em 1553 e mais sete em 1559, daí a necessidade da prática do cunhadismo[15] para a ocupação do Brasil pelos portugueses.

            Esses movimentos econômicos, sociais e culturais na história colonial dão a medida da visão da metrópole sobre o Brasil, pintando um quadro onde as tintas da exploração são bem fortes, ofuscando as cores da autodeterminação de um povo.

A partir do instante em que a nação brasileira começa a se enxergar como tal, surge a inquietação com um modelo eminentemente de exploração adotado na economia do país, seja no uso dos recursos naturais ou nas práticas do comércio exterior.

O Decreto 2.933 de 1915, representava esta insatisfação, ele se opunha a um modelo econômico demasiadamente liberal para uma nação com um histórico de exploração tão violento, decerto tal modelo nunca se preocupou com o desenvolvimento humano por estas terras, afinal os brasileiros não passavam de “cunhados” indígenas que apenas poderiam ajudar nas atividades primárias da extração das riquezas, a eles a subsistência, aos senhores do além-mar, as riquezas.

À medida que a brasilidade ganha forma e força, o pensamento nacionalista e progressista começa a tensionar o cenário nacional, opondo-se às cores da exploração presente no quadro da vida brasileira, daí a resistência a política de laissez-faire contida no art. 72 da Constituição de 1891.

O Decreto 2.933 de 1915 (Lei Pandiá Calógenas), a primeira leitura poder-se-ia entender inconstitucional, no entanto, o art.72 continha exceções, “[…] As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria”.

Tais “limitações” surgem com o Decreto 2.933 de 1915 e a chamada “Lei Simões Lopes” de 1921 (Decreto 4.265 de 15/01/1921, regulamentado pelo Decreto 15.211 de 28/12/1921), promulgada pelo paraibano Epitácio Pessoa e considerada o primeiro Código de Mineração do Brasil (Scaff, 2021), que regulava a propriedade e exploração das minas e, em seu art. 5º dispunha que a mina constituía propriedade imóvel acessória do solo, mas distinta dele[16].

Em relação a descoberta da jazida a Lei Simões Lopes em seu artigo 17 previa que qualquer pessoa, brasileiro ou estrangeiro residente no Brasil, ou qualquer empresa legalmente constituída poderiam declarar a descoberta da mina[17].

A descoberta conferia direito de pesquisa ao seu descobridor, o pesquisador que não fosse o proprietário do solo não poderia lavrar e comercializar o minério extraído sem autorização do proprietário do solo, o que mantinha na prática o regime de Acessão.

Houve outros movimentos de proteção ao interesse nacional sobre os recursos minerais na Primeira República, como por exemplo, a majoração do imposto de exportação do minério de ferro, instituída por Artur Bernardes em 1918 quando passou a comandar o Província de Minas Gerais. “Simultaneamente, reduziu o imposto em quase cem vezes para as empresas que instalassem usinas siderúrgicas no seu estado” (Machado & Figueroa, 2020, p. 149).

Diante desses aportes, é de se considerar que o regime de Acessão não era de todo aceito pelos políticos brasileiros e o seu exercício pleno não foi uma prática isenta de resistências e limitações. Esse clima em torno da propriedade dos recursos minerais do subsolo brasileiro presente na Primeira República vai desaguar na mudança de regime de propriedade com o advento da Revolução – para alguns, o Golpe – de 1930.

Na próxima coluna abordaremos o Regime Dominial. Até á e abraços!!!

OBS. Este artigo é baseado em um trabalho por mim publicado na Revista Científica “Contribuciones a Las Ciencias Sociales. O artigo cientifico completo pode ser acessado pelo link: https://ojs.revistacontribuciones.com/ojs/index.php/clcs/article/view/3440 ou pelo DOI: https://doi.org/10.55905/revconv.17n.1-046


[1] Art 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

§ 17 – O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria.

[2] Superficiário é o proprietário do solo onde se localizam as jazidas minerais.

[3] SCAFF, Fernando Facury. Royalties do petróleo, mineração e energia: aspectos constitucionais, financeiros e tributários. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2021

[4] FRANÇA, R.L. Hermenêutica Jurídica. 6ª ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1997.

[5] O processo gramatical concentra-se no alcance semântico das palavras utilizadas na norma jurídica, trata-se de um estudo filológico. Já o processo lógico-sistemático tem-se uma abordagem sintática, no que concerne a lógica envolvendo as proposições que são estabelecidas e suas conclusões, não há espaço para ambiguidades ou meios-termos, esta interpretação busca entender a validade da compreensão proporcionada pela conexão lógica entre as expressões que formam o todo, possibilitando seu entendimento e repercussão em casos concretos.

[6] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

[7] BITAR, Orlando. Obras completas – Volume 3. Brasília: Conselho Federal de Cultura, 1978.

[8] Art 64 – Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.

Parágrafo único – Os próprios nacionais, que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estiverem situados.

[9] CORRÊA, Maria Letícia. Regime de propriedade de minas e jazidas na Primeira República brasileira: revisitando o caso das minas de Itabira e os interesses em disputaTempos Históricos, Marechal Cândido Rondon (PR), v. 22, p. 202-224, 2018.

[10] SCAFF, Fernando Facury. Royalties do petróleo, mineração e energia: aspectos constitucionais, financeiros e tributários. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2021.

[11]  Art. 2º A mina constitue propriedade immovel, distincta do sólo, sendo alienavel isoladamente. Os accessorios permanentemente destinados á exploração, obras d’arte, construcções, machinas e instrumentos, animaes e vehiculos empregados no serviço da mina, bem como o material de custeio em deposito, são considerados immoveis.

[12] FIGUEROA, S. F. de M. As ciências geológicas no Brasil: uma história social e institucional, 1875-1934. São Paulo: Hucitec, 1997.

[13] MACHADO, Iran. FIGUEROA, Silvia. História da Mineração Brasileira. Curitiba: Editora CRV, 2020.

[14] RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[15] Segundo Darcy Ribeiro (2008, p. 72), “a instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro foi o “cunhadismo”, velho uso indígena de incorporar estranhos à sua sociedade. Consistia em lhes dar uma moça indígena como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo.”

[16] Art. 5º A mina constitue propriedade immovel, accessoria do solo, mas distincta delle.

[17] Art. 17. Todo individuo, nacional ou estrangeiro residente no Brasil, assim como qualquer corporação ou companhia legalmente constituida, póde manifestar o descoberto de uma mina.

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