Em um final de tarde de sábado em uma das mais prestigiadas confeitarias da cidade do Recife, três tiros selaram o destino de João Pessoa um dos mais proeminentes políticos da época e, motivaram o movimento que ficou conhecido como Revolução de 1930. Aproveitando-se do evento da Confeitaria Glória do dia 26 de julho de 1930, Getúlio Vargas candidato à presidência derrotado juntamente com seu companheiro de chapa, João Pessoa, no pleito daquele ano, deflaga uma ruptura constitucional que culmina com sua subida ao poder no dia 3 de novembro de 1930.
Segundo Bonavides (2004, p. 366)[1], “os primeiros anos da década de 30 espelharam já o início de uma convulsão ideológica, de graves consequências para a futura ordem constitucional brasileira”. A constituição de 1934 espelha em vários trechos o nacionalismo que florescia entre setores com menor poder político na primeira República, por exemplo, nota-se uma preocupação na preservação dos interesses nacionais em relação as fontes de energia elétrica e exploração dos recursos minerais.
A inspiração na Constituição alemã de Weimar de 1919 influenciou na organização de um Estado Social de Direito[2] no Brasil em vários aspectos da vida nacional, em particular na regulação do regime de propriedade sobre os recursos minerais, que demonstrou a preocupação em subordinar o direito de propriedade ao interesse social e coletivo.
Em termos de transição constitucional, explica Miranda (1990, p. 104)[3], que em uma transição constitucional decorrente de uma revolução (ruptura) “[…] ocorre sempre um dualismo. Pelo menos, enquanto se prepara a nova Constituição formal, subsiste a anterior, a termo resolutivo.” (Miranda, 1990, p. 104).
No Brasil em 1930, o dualismo conforme descrito por Miranda não se apresentou de maneira plena, nota-se um empoderamento absoluto do Governo Provisório liderado por Vargas em termos constitucionais entre 1930 e 1934, o qual exerceu sem restrições as atribuições não só de poder executivo, como também de poder legislativo, na reorganização do Estado Brasileiro, conforme o art. 1º do Decreto 19.398 de 11 de novembro de 1930[4].
Especificamente em relação ao direito minerário, Vargas suspendeu entre 1931 e 1933 todas as concessões minerárias em vigor e todos os “atos que implicassem alienação ou oneração de recursos minerais” (Scaff, 2021, p. 125)[5]. Assim, para a regulação das minas não houve dualismo, mas sim uma interrupção abrupta sobre suas atividades e normatização.
O cenário se altera por completo no dia 10 de julho de 1934 quando é promulgado o Decreto 24.642 que estabeleceu o novo Código de Minas Brasileiro, e trouxe no seu art. 4º o Regime Dominial para propriedade sobre o subsolo e recursos minerais, uma vez que distinguia a coisa “solo” da jazida nele contido[6]. A Constituição de 1934 promulgada seis dias depois ratifica o Regime Dominial em seu art. 118[7].
O Regime Dominial se assemelha ao Regaliano, a principal distinção repousa no proprietário, neste é o monarca, naquele é o Estado que possui o controle e a responsabilidade pela regulação, exploração, concessão e fiscalização das atividades mineradoras, bem como ele recolhe os royalties a título de compensação pela exploração.
O art. 5º do Decreto 24.642[8] dispôs que as jazidas desconhecidas até aquele momento, quando descobertas seriam incorporadas ao patrimônio da Nação Brasileira, aquelas que já se encontravam conhecidas continuariam a pertencer ao superficiário ou a quem possuísse o legítimo título sobre ela.
A Constituição de 1934 e o Código de Minas (Decreto 24.642/34) consumam um processo repleto de embates ao longo do período imperial e da primeira República sobre o regime de propriedade dos recursos minerais, prevalecendo a visão nacionalista da emergente classe política dominante capitaneada por Getúlio Vargas.
Dois protagonistas nesse período merecem destaque, o deputado Pandiá Calógeras e o general Juarez Távora. Este recebeu a incumbência de assumir o Ministério da Agricultura, o qual era responsável pelas questões relativas ao solo e subsolo. Em conferência realizada no dia 13 de maio de 1955 durante a VII Semana de Estudos dos Problemas Mínero-Metalúrgicos do Brasil organizada pela Escola Politécnica da USP especialmente pelo curso de Engenharia de Minas e Metalurgia, Juarez Távora abordou a criação do Código de Minas de 1934 e os princípios que nortearam tanto ele, como o art. 118 da Constituição de 1934. Para o General a atividade de mineração foi libertada “do egoísmo e da incapacidade técnica e financeira dos proprietários do solo, do açambarcamento a que estava sujeito pela aquisição de largas zonas mineralizadas, por grandes empresas ou por capitalistas poderosos.”[9]
Continua o ex-ministro de Vargas, afirmando que um outro objetivo era o de “dar à União competência privativa para legislar sobre normas gerais de mineração, livrando esta dos prejuízos que estavam fazendo malograr alguns Governos Estaduais.”[10]
Imbuído destes princípios, Távora enquanto ministro em 1934 respalda o então diretor do DNPM[11], Domingos Fleury da Rocha, na redação do Código de Minas, que se baseou no anteprojeto desenvolvido pela 9ª Subcomissão da Grande Comissão Legislativa organizada pelo Governo Vargas, presidida pelo deputado Pandiá Calógeras, o mesmo que articulou em 1915 o Decreto 2.933, que juntamente com a “Lei Simões Lopes” de 1921, tentaram impor limites ao Regime de Acessão instituído pela Constituição de 1891.
O Regime Dominial representou para os nacionalistas, nas palavras de Juárez Távora a “abolição do direito de acessão, […] transferindo-se do arbítrio dos particulares para regulamentação do Poder Público, o direito de conceder a exploração destas riquezas.”[12]
As riquezas minerais que se refere o General em sua conferência, passaram a ocupar lugar de destaque no plano econômico de Vargas, sobreveio ao Código de Minas a nacionalização da exploração através da proibição expressa no texto constitucional de 1934 e 1937 de autorizações ou concessões a estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas. Passa-se a ser exclusivo o direito de minerar no país aos brasileiros ou a empresas constituídas no Brasil por seus nacionais.
Em 1941, o governo edita o Decreto-Lei 3.002 que autoriza a constituição da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em Volta Redonda – RJ, no ano seguinte, através do Decreto-Lei 4.352, Vargas cria a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), que viria a ser a maior mineradora do país e da América Latina, assim o projeto nacionalista de exploração dos recursos minerais ganha contornos reais, o que não seria possível sem a migração do Regime de Acessão para o Dominial sobre a propriedade do subsolo e seus recursos minerais.
A experiência brasileira bem revela a influência na esfera constitucional das diversas correntes políticas acerca do desenvolvimento econômico, como visto ao longo do texto. Para efeitos da participação estrangeira na exploração das riquezas minerais nacionais, percebe-se variações nos textos constitucionais, a constituição de 1937 em seu art. 143, § 1º, deixa claro que a autorização para exploração das riquezas minerais “[…] só poderá ser concedida a brasileiros, ou empresas constituídas por acionistas brasileiros […]”.
Nove anos depois, a Constituição de 1946 em seu art. 153, § 1º, possibilitou a exploração das riquezas minerais nacionais para além dos brasileiros, às “sociedades organizadas no País”, assim possibilitou a participação de estrangeiros e empresas estrangeiras. O novo entendimento constitucional de 1946 contrapunha o art. 6º do Decreto-Lei 1.985 de 29 de março de 1940, o Código de Minas que substituíra o Decreto 24.642 de 1934, que previa que “o direito de pesquisar ou lavrar só poderá ser outorgado a brasileiros, pessoas naturais ou jurídicas, constituídas estas de sócios ou acionistas brasileiros.” (art. 6º, Decreto-Lei 1.985).
Houve discussões sobre a constitucionalidade do art. 6º do Código de Minas de 1940, a partir do novo texto da Constituição de 1946, uma vez que ocorreu indeferimentos por parte do Ministério de Minas e Energia ao título concessivo para funcionamento de empresas de mineração que possuíam estrangeiros como acionistas. O assunto foi dirimido pelo Supremo Tribunal Federal através do julgamento em 03 de abril de 1963 do mandado de segurança nº 11.189-DF, que julgou como inconstitucional caráter restritivo do art. 6º do Decreto-Lei 1.985.
Também merece registro aqui, um trecho do voto do Ministro Relator do Mandado de Segurança nº 11.189, Cândido Motta Filho, o qual foi sensível a carente capacidade de investimento do Estado Brasileiro diante de projetos mineradores de grande envergadura:
“A generalidade, que abre porta para as sociedades organizadas no país, inspirou-se em interesse nacional. “A proibição, diz o Consultor jurídico do Ministério de Agricultura, de acesso a estrangeiro nas sociedades de mineração ou de energia hidroelétrica afastava dessas atividades o capital estrangeiro, com evidente prejuízo, para a economia nacional, que ainda não pode prescindir de sua colaboração nos empreendimentos de grande envergadura, pela deficiência notória das reservas nacionais””[13].
O nacionalismo ao extremo pode derivar ao protecionismo[14], para um país em desenvolvimento que era e, ainda é, o caso do Brasil, um comércio exterior alicerçado em bases de crescimento mútuo entre os negociantes, revela-se salutar para sua economia e desenvolvimento.
Percebe-se uma busca pelo equilíbrio entre o nacionalismo consolidado na era Vargas com um novo momento geopolítico que emergiu após a segunda guerra mundial. A abertura para o capital estrangeiro na participação de atividades de exploração de riquezas minerais brasileiras faz parte desse contexto.
Surge nesse período o conceito de “distância econômica[15]”, cunhado por Eliezer Batista, presidente da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), de 1961 a 1964 e de 1979 a 1986. Através das iniciativas logísticas e comerciais idealizadas por Eliezer Batista para o minério de ferro brasileiro, o país passa a ocupar um lugar de destaque no comercio mundial de comodities minerais.
O capital estrangeiro nesse esforço ocupava lugar estratégico, esse entendimento também se fazia presente no governo militar do Marechal Castello Branco, daí a razão para a edição do Decreto 55.282 de 22 de dezembro de 1964, que incrementou medidas para exploração e exportação de minério de ferro nas jazidas dos vales dos rios Doce e Paraopeba em Minas Gerais.
Essa linha de pensamento influenciou a Constituição de 1967 a manter o entendimento sobre a participação de capital estrangeiro que o texto de 1946 e, também suscitou a reformulação do Código de Mineração (Decreto-Lei 227 de 1967), em vigor até a atualidade, que trouxe inovações, sendo a principal delas a “transferência do direito de prioridade de pesquisa do proprietário do solo para aquele que tiver primeiro requerido a autorização de pesquisa ou o registro da licença.” (Scaff, 2021, p. 141).
A Constituição de 1988 manteve o Regime Dominial com suas anteriores desde a de 1934, mas como dito anteriormente, deixando claro a titularidade da União sobre o os recursos minerais, inclusive os do subsolo através do art. 20, inciso IX[16]. Quanto a participação estrangeira na pesquisa e lavra das jazidas, o art. 176 em seu § 1º, a vedou, prevendo apenas o aproveitamento dos recursos minerais por brasileiros ou empresa brasileira de capital nacional[17].
O art. 171 em seus incisos I e II definiam a “empresa brasileira”, restringindo seu conceito a uma rigidez quanto ao controle por parte de brasileiros, sede e administração no país e titularidade de pessoas físicas domiciliadas e residentes no Brasil[18]. Os dois dispositivos constitucionais causaram impeditivos de participação de estrangeiros, pessoas físicas e empresas, na exploração mineral que desde 1946 havia flexibilização, o que gerou controvérsias no setor, acarretando refluxo de investimentos. No entanto, a nova abordagem durou apenas sete anos, em 1995 a Emenda Constitucional nº 6, alterou a redação do § 1º do art. 176, praticamente retornando ao texto de 1946, quando permite a empresa constituída sob as leis brasileiras pesquisar e lavrar recursos minerais[19], e revoga na sua totalidade o art. 171.
OBS. Este artigo é baseado em um trabalho por mim publicado na Revista Científica “Contribuciones a Las Ciencias Sociales. O artigo cientifico completo pode ser acessado pelo link: https://ojs.revistacontribuciones.com/ojs/index.php/clcs/article/view/3440 ou pelo DOI: https://doi.org/10.55905/revconv.17n.1-046
[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
[2] No Estado Social de Direito, além do foco na segurança jurídica, também se preocupa com os ideais de justiça e igualdade, particularmente para garantia e efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais.
[3] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 4ª ed. Tomo II. Parte, II, Capítulo II: 95-158, Coimbra Editora. Coimbra. 1990.
[4] Art. 1º O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua plenitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como tambem do Poder Legislativo, até que, eleita a Assembléia Constituinte, estabeleça esta a reorganização constitucional do país;
[5] SCAFF, Fernando Facury. Royalties do petróleo, mineração e energia: aspectos constitucionais, financeiros e tributários. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2021.
[6] Art. 4º A jazida é bem immovel e tida como cousa distincta e não integrante do solo em que está encravada. Assim a propriedade da superficie abrangerá a do sub-solo na forma do direito comumm, exceptuadas, porem, as substancias mineraes ou fosseis uteis á industria.
§1º A propriedade mineral, reger-se-ha pelos mesmos principios da propriedade commum, salvo as disposições especiaes deste Codigo.
[7] Art 118 – As minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas d’água, constituem propriedade distinta da do solo para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial.
[8] Art. 5º As jazidas conhecidas pertencem aos proprietarios do solo, onde se encontrem ou a quem for por legitimo titulo.
§1º As jazidas desconhecidas, quando descobertas, serão incorporadas ao patrimônio da Nação, como propriedade imprescritível e inalienável.
[9] Transcrição da conferência de Juarez Távora – Revista Geologia e Metalurgia nº 14 de 1956, p. 161.
[10] Idem, p. 161
[11] Departamento Nacional de Produção Mineral.
[12] Transcrição da conferência de Juarez Távora – Revista Geologia e Metalurgia nº 14 de 1956, p. 162.
[13] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 11.189-DF, página 6.
[14] O protecionismo consiste em proteger e favorecer os produtores nacionais contra a concorrência de produtores estrangeiros. É uma forma de regulação do comércio externo de um país.
[15] Eliezer Batista lançou o conceito de “distância econômica” em contraponto a “distância física” através da lógica de agregar valor logístico a comodities, abrindo mercados ultramarinos, como no caso da rota do minério de ferro entre o Porto de Tubarão no Espírito Santo e o Japão. Em 1962, graças ao conceito de “distância econômica”, foram assinados contratos de exportação, válidos por 15 anos, com 11 siderúrgicas japonesas, num total de cinco milhões de toneladas/ano – o que representava mais do dobro da até então produção da CVRD, que era de dois milhões de toneladas ao ano. Abriu-se um mercado para um produto que na época possuía baixo valor de venda (minério de ferro), mas o objetivo era ganho com a “logística”, transformando uma distância física (a rota Brasil-Japão-Brasil), numa “distância econômica”, o valor necessário para colocar o minério brasileiro nas usinas japonesas. Em entrevista à Revista Trip em 2012, o ex-presidente da Vale sintetizou a motivação para a intensificação do comércio com a Ásia: “Na década de 1960, o Brasil tinha minério em abundância, mas ninguém queria comprá-lo. O Japão precisava do minério para reerguer sua indústria siderúrgica, que tinha sido destruída na Segunda Guerra. Como presidente da Vale vi ali uma oportunidade de negócio para o Brasil. Na época, Estados Unidos e Europa não queriam vender minério para os japoneses.” (Revista Trip, 2012, acessada pelo link: https://revistatrip.uol.com.br/trip/eliezer-batista em 29/11/2023
[16] Art. 20. São bens da União:
IX – Os recursos minerais, inclusive os do subsolo;
[17] Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa brasileira de capital nacional, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.
[18] Art. 171. São consideradas:
I – empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País;
II – empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades.
[19] § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)